quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Discurso Científico e trabalhos em Bolonha

Este post foi retirado  de artigo que publiquei nesta revista disponível para venda na UIIPS do Instituto Politécnico de Santarém ou nas Edições Cosmos.  

A reprodução parcial deste texto deve ser identificada da seguinte forma:
Ferrão Tavares, C. (2011). Abordagem acional e competência comunicativa multimodal: estaleiro de apresentação de trabalhos académicos. Intercompreensão, Revista de Didáctica das Línguas. Santarém: IPS-ed. Cosmos.pp. 85-118


«Com vista a uma reflexão sobre a apresentação de trabalhos científicos, impõe-se apresentar, ainda que de forma breve, algumas características da comunicação científica, que não se resume a um léxico específico, como muitas vezes se considera. A noção de géneros discursivos - que não vamos aprofundar - tem-nos parecido operatória, no contexto do ensino superior para o desenvolvimento, nomeadamente, da componente pragmática. Afinal, os estudantes do ensino superior são expostos a diversos géneros, que podem ser sistematizadas nos seguintes termos, tal como proposto  por Béacco et al. (2010: 21):
·         formes textuelles des genres de la communication ordinaire (conversation, récit, opinion personnelle, expression de sentiments) ;
·         formes textuelles de ‘genres’ intermédiaires et médiateurs, non nécessairement présents dans la communication sociale réelle ou bien ambivalents (utilisés dans la communication ordinaire et scientifique mais selon des modalités différentes) ;
·         formes textuelles correspondant aux genres de discours scientifiques (ceux des communautés scientifiques), parascientifiques (ceux des enseignements universitaires des disciplines) ou de divulgation, formes que l’on aura choisies pour modèles d’apprentissage et objectifs de l’enseignement.

Entre estes três níveis, há grandes diferenças na maneira de construir os textos, o que representa, já por si, uma enorme dificuldade para os discentes. Com efeito, habituados a situar-se, quase sempre, no primeiro nível, que designamos como interessante,[1] os estudantes têm dificuldade em passar para os géneros intermédios e, por exemplo, fazer uma transcrição no seu texto de discursos do terceiro nível, que designamos como demonstrativo, fazendo dizer aos autores, muitas vezes, o que eles nunca disseram.

Para desenvolver estes aspectos, retomamos alguns dados do documento referido, que nos permitimos resumir e adaptar.

Assim, no primeiro nível, podemos distinguir as seguintes operações cognitivas e discursivas: apresentar,  descrever, contar, avaliar (convicção pessoal), argumentar, com recurso ao emprego do eu, de vocabulário genérico, de termos vagos de avaliação, de frases simples, da coordenação e com o recurso às modalizações apreciativa e deôntica - a título exemplificativo, Eu acho que… é muito interessante (modalidade apreciativa). Em muitos trabalhos, na própria introdução, os estudantes conseguem chegar às implicações dos mesmos com a produção de enunciados como, por exemplo, os professores devem utilizar as TIC (modalidade deôntica). Nos dois níveis seguintes, pretende-se que os estudantes não só veiculem os atos de fala, que traduzem as operações cognitivas referidas, como realizem, também, as operações de explicar, de definir, de exemplificar, de comparar, de relacionar e de avaliar (em outros termos que não os da convicção pessoal), que se distanciem do seu discurso, recorrendo a uma terminologia mais precisa, a pronomes pessoais que conduzam a maior objectivação do discurso, a nominalizações, a construções passivas, a formas de quantificação mais precisas, a articuladores lógicos - que implicam o emprego de conjunções que favoreçam o emprego do condicional e do conjuntivo -, formas de modalização epistémica (nomeadamente, através da certeza com valor geral – O vento é o ar em movimento – ou, então, de diferentes verbalizações da dúvida e da hipótese, como, por exemplo:,  Na sequência do autor x, talvez se possa considerar que…). Neste caso, não é a convicção pessoal que está expressa. Trata-se de uma afirmação aceite pela comunidade científica ou defendida por um investigador com legitimidade para o fazer e que, muitas vezes, nem sequer utiliza a modalidade da certeza.

Uma dificuldade sentida, particularmente, pelos estudantes prende-se com o recurso a estrutura de sequências explicativas. Por isso é necessário tomarem conhecimento dessa estrutura. Num texto explicativo, encontramos, com frequência, a seguinte sequência: uma determinada definição, seguida de caracterização, com a distinção de subcategorias, e, seguidamente, da devida exemplificação. Estas diferentes fases são anunciadas e interligadas pelos conectores lógicos (contudo, mas, no entanto…) e por performativos discursivos (analisaremos…, definiremos…, sintetizámos…), incluindo diversas vozes, marcadas através de introdutores de citação (segundo X…, na sequência dos trabalhos de…, os autores x distinguem três categorias…). Os trabalhos que são pedidos no final do Mestrado ou do Doutoramento obedecem a uma estrutura textual que reflete o próprio processo investigativo. Numa tese, apresenta-se um projecto de investigação, conduzido, normalmente, durante um período geralmente longo; porém, é longo o processo de escrita e, como tal, distanciado da investigação. Numa monografia ou numa dissertação científica, apresentam-se os resultados de uma investigação sobre um assunto determinado, designadamente, com parco desenvolvimento, dado o reduzido período de tempo em que é conduzido o estudo. A construção do discurso de um trabalho de projecto ou do relatório de estágio acompanha o próprio processo de investigação-intervenção. Neste caso, o estudante – investigador-trabalhador – vai conduzir um projecto ou animar um estágio, tendo o seu trabalho implicações na ação. Contudo, é preciso ter em conta que, dada a caracterização legal deste tipo de trabalho em Bolonha, este não se restringe à ação. Assim, para ter implicações na ação (devendo ser de natureza aplicada), o trabalho final  parte da observação de um contexto profissional, que fará emergir diversas questões e hipóteses (problematização)  que exigem fundamentação (enquadramento teórico), para identificar correntes e autores que abordaram o assunto antes do estudante, a definição de conceitos e a distinção de categorias de análise. Ao mesmo tempo, o autor do projeto ou o estagiário vai conduzindo a ação - criando um determinado produto, desenvolvendo uma determinada sequência pedagógica, construindo uma página web... -, apercebendo-se do antes, do processo e do depois. Ao mesmo tempo que desenvolve o projeto, servindo-se dos dados do enquadramento teórico para o fundamentar e analisar o seu caso, encontra novas categorias em outros autores ou na própria observação. Tem, evidentemente, de fazer falar os dados, analisá-los e interpretá-los, de molde a determinar se os mesmos respondem ou não (ou parcialmente) às questões-problema levantadas. No final, impõe-se que o discente se interrogue sobre as implicações do seu trabalho – para si próprio, para o público, para a empresa e sobre o próprio futuro do trabalho realizado, enunciando outras possíveis vias de exploração.

Assim sendo, todos os trabalhos de fim de curso, e independentemente da profundidade, do número de sujeitos ou de objectos «interrogados», do tempo, do número de páginas, da integração ou não em equipas de investigação…, exigem as mesmas competências da parte do estudante-investigador do Ensino Superior universitário ou politécnico, daí se compreendendo que, no Decreto-Lei nº 74/2006, de 24 de março, as competências não sejam diferenciadas nos dois subsistemas».



[1] L. Porcher publicou, em 1985, um artigo intitulado «L’intéressant et le démonstratif: à propos du statut de la didactique des langues et des cultures» (ÉLA, 60, 17-21). Com a finalidade de levar o estudante a distinguir entre os dois níveis, nas plataformas de elearning de apoio às nossas unidades curriculares, costumamos criar dois fóruns: um, interessante, com comentários de senso comum, e um outro, no qual o estudante deve eliminar o senso comum, definindo, argumentando, identificando as fontes e exigindo, ,assim, um grau maior de distanciamento do estudante, intitulado demonstrativo. O estudante deve, em função da análise que faz dos contributos (que são avaliados pelo professor) que escreve para a plataforma, decidir o fórum em que publica um determinado artigo.  

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