Estou a parafrasear um título que li , há uns anos , creio que no jornal
Público (não consegui encontrar a referência), substituindo«tédio» no original por preguiça.
Tive a sorte de conhecer bons oradores. Homero Pimentel, Conceição Sarmento, Victor Aguiar e Silva - para só referir o Colégio, o Liceu e a Universidade, em Portugal. E ,em três anos, em Paris, conheci oradores notáveis, em Notre Dame , o cardeal Lustigier . Na Universidade Francesa ( aberta quase gratuitamente aos inscritos e mesmo gratuitamente aos auditores livres . A verdadeira gratuitidade da cultura!) ouvi e vi Galisson, Charaudeau, Porcher, Sophie Moirand, Greimas, Ducrot… e os seus convidados e muitos outros excelentes comunicadores, para não citar alguns notáveis linguistas e especialistas de teoria da literatura mais dados à escrita do que à comunicação oral. Ou, no teatro,
Bernard Luchini a dizer poesia francesa.
Aderi ao power point logo no início. Comecei , pouco depois, por retirar as minhas apresentações da plataforma de ensino a distância, depois deixei de as disponibilizar aos alunos. Passei pelos quadros interactivos multimédia, reduzi o número de diapositivos e… estou a voltar a utilizar o quadro tradicional. Este percurso resulta da observação dos tais bons comunicadores antes e depois da era do power point.
O bom comunicador torna-se, muitas vezes, preguiçoso com o power point e o público torna-se, igualmente, preguiçoso com o power point. O bom comunicador tem a palavra, a voz, os gestos, o olhar, as mãos para comunicar com o público. Pontua o discurso, regula o tom e a intensidade da voz pela atitude do público, faz gestos de convergência com o público para o prender, repete articuladores, acentua palavras, hesita na escolha das mesmas para melhor se aproximar do pensamento e adequá-lo ao público. Utiliza uma «sintaxe mista», como refere Slama Cazacu.Com os gestos, antecipa o que vai dizer, agarra-nos com ao olhar, a voz e não nos deixa nem fugir nem adormecer. Co-constrói o seu texto com o público.
Quando passou (e nem todos passaram felizmente) para a era tecnológica, transformou-se (alguns) em tronco. O braço e a mão direita ficam dependentes do rato ou do comando. A gestualidade deixa de ser ilustrativa, afectiva reguladora para passar a funcional. Perde os valores simbólicos e interactivos. O braço esquerdo , como funciona em espelho, fica perdido inerte e acaba, por vezes, no bolso. O orador ( e não estou a falar do que lê o que está escrito) tropeça nas palavras que já não queria que estivessem escritas, porque, em função do momento, preferia que o público imaginasse outras, a partir dos seus gestos. Mas o público está preso à imagem, à escrita e até nem vê os gestos e nem sempre ouve…
Tudo isto se complica nos novos e belos auditórios onde a projecção surge a 3 ou 4 metros de altura. O olhar do orador e do público raramente se cruzam. O público fica preso à apresentação e por muito que o orador se esforce não se pode regular pelo olhar do público. O orador fica refém da sua própria apresentação. Deixa de usar conectores, não enumera com os dedos. A apresentação poupa-lhe as marcas de sequência lógica. Nem precisa (nem deve) pôr números na imagem. A apresentação torna-se autónoma, cria hiperligações, volta atrás. Mas o orador deixa de contar histórias… Até o humor ( que só é humor porque imprevisível ) foi preparado na apresentação. A narrativa do comunicador transforma-se numa explicação.
E o público… Sem power point olha o comunicador, olhos nos olhos. Repara nas mãos, antecipa as palavras a partir dos gestos, deixa-se envolver pela melodia, pela escolha das palavras…
Com o Power point, sobretudo se a apresentação for projectada acima do orador, o olhar do público fica preso nas alturas e raramente se cruza com o orador. Lê o que está escrito e até deixa de ouvir…e «twita». Não tira notas…«de todas as maneiras a apresentação até já está disponível on line ou o comunicador faculta-a»… «Mais uma que vai encher a
pen e nunca mais é aberta!».
O Quadro Interactivo Multimédia reduz a imprevisibilidade da interacção pedagógica e acentua o «efeito fotocópia» denunciado por Humberto Eco: o investigador faz ,ou fazia, resmas de fotocópias e ficava satisfeito porque as tinha em casa. Com o QIM o aluno fica satisfeito porque fica com a apresentação no email ou na
pen , mas, neste caso, nem vê o volume como na pilha de fotocópias. Se as consulta em casa ou não …aí é que está o problema, mas entretanto não tirou notas na aula, não memorizou - limitou-se a achar «interessante», «gratificante»… ! Os riscos que esta ferramenta pode trazer às aprendizagens!
E voltando ao quadro tradicional… O orador pensa e modifica o seu pensamento à medida que constrói os seus esquemas, para si e para os outros…em função do olhar do público. Procura palavras. Constrói as chavetas. Coloca travessões, setas antes de verbalizar o seu pensamento para que o público antecipe. Adapta-se…improvisa… O esquema, que pode ter na cabeça ou no papel , sofre mutações no quadro à medida que vai sendo construído e partilhado, metamorfoseia-se ( para utilizar a metáfora de Pierre Levy sobre o hipertexto)…
O esquema em power point cristaliza-se , coisifica-se e … cristaliza o pensamento do comunicador
E assim, estamos no que foi caracterizado pelos investigadores de Palo Alto como «comunicação paradoxal» E do ponto de vista neurológico. Quais as implicações da mobilidade ( ou imobilidade) das mãos no processamento da linguagem? Não me aventuro neste campo por incompetência, mas se a verbalização estiver ligada à mobilidade e à mão esquerda (como é frequente ler-se) …então percebe-se a dificuldade do comunicador.
Tudo isto, interpretado em termos dos estudos da pragmática em formato blogue, ganharia a ser investigado. Ora há uma ferramenta nova: o equipamento móvel de
eye tracking que permitiria efectivamente «ver» o que faz público nos diferentes dispositivos comunicativos. Será que há alguém interessado em participar, colaborar, financiar este projecto de investigação?
E como , ainda assim, continuo a utilizar power point vou dar algumas sugestões que costumo dar aos meus alunos, num outro artigo.