domingo, 17 de novembro de 2019

Escrever tese ou artigo científico: modalização ou «modalidade»


Nesta mensagem, ou melhor, neste «rascunho » ( o carácter provisório é,  aliás, uma característica da escrita em blogues) apresento reflexão que descobri nos meus ficheiros e que foi objeto de  partilha numa das minhas aulas (texto não publicado).   
A  escrita  de  artigos e comunicações é uma prática corrente no ensino superior. No entanto, nem todos os estudantes de licenciatura e mestrado revelam ter desenvolvido as competências previstas no Decreto-Lei 74/2006, nomeadamente a competência seguinte: «Ser capazes de comunicar as suas conclusões, e os conhecimentos e raciocínios a elas subjacentes, quer a especialistas, quer a não especialistas, de uma forma clara e sem ambiguidades». Esta competência transversal às diferentes disciplinas escolares e académicas implica ser capaz de realizar, entre outras, as seguintes operações cognitivas e discursivas:
      Relatar (uma experiência)
      Classificar (objetos, fenómenos, processos)
      Definir (elemento, reação, noção)
      Representar dados textuais ou materiais
      Interpretar
      Colocar em paralelo ou em oposição
      Deduzir interpretações ou conclusões a partir de dados
      Justificar
      Integrar observações
      Argumentar.
Ora, a leitura de muitos trabalhos académicos revela a utilização do termo «argumentar» no sentido  de dar uma opinião sobre um assunto sem que esta seja sustentada em argumentos sólidos, traduzindo-se em «variações» à volta de «eu acho». Destas considerações iniciais decorre a justificação para a distinção entre «interessante e demonstrativo» que figura no título e que desenvolv i em artigo publicado.

Esta distinção  é declinada num artigo de Louis Porcher, de 1985, «L’intéressant et le démonstratif : à propos du statut de la didactique des langues et des cultures», publicado na revista Études de Linguistique Appliquée nº60. Nesse artigo, L. Porcher sublinhava os perigos que correria a Didática das Línguas se enveredasse por uma via de simplificação, privilegiando a opinião, «o interessante», em vez de um discurso assente na investigação de natureza «demonstrativa». A leitura deste texto de Louis Porcher questionava-me enquanto didata- jovem investigadora, no sentido de construir um discurso demonstrativo em Didática das Línguas Culturas, mas também enquanto docente, já que uma das grandes dificuldades dos estudantes, mesmo no doutoramento, consiste no modo como se situam em relação a estes dois «tipos» de discurso veiculados por formas de modalidade diferentes. 
Esta distinção relaciona-se  com a categoria discursiva designada como modalização ou categoria de «modalidade» . Em termos pouco especializados, pode definir-se «modalização»  como a maneira como o sujeito se «aproxima» ou «distancia» dos discursos que produz e dos seus interlocutores. Para distinguir os tipos de modalidade, apoiei-me, na altura deste «rascunho», em 2014, em documento  do Ministério da Educação e Ciência, intitulado Programa e Metas para o ensino secundário. Os autores deste documento apresentam três categorias de modalidade, retomando, possivelmente, a tipologia de Culioli: «modalidade epistémica (valor de probabilidade ou de certeza), deôntica (valor de permissão ou de obrigação) e apreciativa» ( p. 28) .
Clarificando estes três tipos de modalização, para ler e escrever um discurso explicativo há necessidade de utilizar formas da modalidade epistémica. Para dar uma opinião, poder-se-á recorrer a formas de modalidade apreciativa com maior ou menor implicação do sujeito que a veicula e com diferentes graus entre a certeza e a dúvida expressa, por exemplo, pelos tempos dos verbos no indicativo ou no conjuntivo em relação com os conetores lógicos e modalizada por formas adverbiais ou adjectivais. Os regulamentos implicam muitas vezes a modalidade deôntica. Pode emitir-se uma hipótese ou dar uma certeza baseada no consenso na «comunidade científica», citando fontes ou em estudos ou opinião do sujeito que a emite, o que implica a modalidade apreciativa.  Para dar um exemplo, a autora deste artigo poderia dizer: «Louis Porcher distingue o discurso interessante do demonstrativo», situando-se, assim, numa modalidade de tipo epistémico, dado que não é ela que estabelece a distinção. Se quisesse utilizar uma modalidade apreciativa, poderia dizer «eu acho o artigo de L.Porcher  muito interessante». A autora poderia, também, afirmar, embora não devesse, dado que estaria a desvirtuar o pensamento do autor (apesar do interesse que os média lhe despertavam, Louis Porcher não teria utilizado uma modalidade deôntica) : «na sequência de Louis Porcher, devem utilizar-se os média na aula». 
Para  compreender a importância da modalidade em trabalhos académicos, recorro a cinco exemplos extraídos de «corpus»  com  enunciados extraídos de trabalhos académicos, não identificados por razões óbvias: 
a) «Neste aspeto, o caso francês é diferente do inglês. Enquanto em Inglaterra a ascendência cultural provoca o respeito desusado pela privacidade, em França produz efeitos distintos. As pessoas estão muito mais ligadas umas às outras, quer devido à densidade populacional, quer pela relação que têm com o espaço (cf. Fast, 2001)».  

Neste excerto, o estudante convocou uma  publicação de vulgarização sobre o não verbal (Fast, 2001), como autoridade para trabalho científico que estava a apresentar. Ora um trabalho de vulgarização não legitima trabalho de investigação científica, o que não quer dizer que não possa ser utilizado, mas desde que o autor o contextualize. Além disso, retoma a modalidade apreciativa do texto «fonte», baseada em grande parte no que se designa de «senso comum».

b) «Cada ser humano tem que aprender o significado do silêncio dos outros, cada professor deve «criar silêncio» para conhecer ou tentar interpretar as atitudes dos alunos (…) Torna-se, então, evidente que as linguagens não verbais, bem como a habilidade de emitir ou receber sinais não verbais, estão intimamente relacionadas com a actuação do professor e dos alunos no contexto educacional, mais especificamente dos professores de línguas uma vez que, segundo Ferrão Tavares (1991:6) «la dimension non verbale semble jouer un rôle plus déterminant que dans d’autres disciplines, puisque l’objectif est  de faire développer chez les apprenants une compétence de communication». 

Neste exemplo, o estudante começa com a modalidade deôntica, recorrendo aos verbos «ter de» e «dever» e apoiando-se no «senso comum». A seguir a modalidade apreciativa de certeza é dada pelas formas «Torna-se, então, evidente», seguido de verbo no presente do indicativo, não estando, neste caso, identificada a voz que declara a «evidência».  Mas, o estudante passa imediatamente da voz indeterminada à voz de  Ferrão Tavares, atribuindo-lhe  a responsabilidade pela afirmação que faz ao utilizar «uma vez que», descontextualizando a citação e alterando a forma de modalização adotada pela  autora que exprime a dúvida através de emprego do verbo «sembler». 

c) «As linguagens não verbais, assumem, por isso, uma grande relevância na medida em que contribuem para uma maior percepção do estado dos nossos interlocutores. É bom não olvidar que as palavras desempenham um pensamento central no desenvolvimento do pensamento e na evolução histórica   da consciência. A este propósito Vigotsky salienta que «uma palavra é um microcosmos da consciência humana» (1996:60)». 

Neste exemplo, o estudante não só expressa as modalidades apreciativa e deôntica, como convoca Vigosky, fazendo dizer ao autor, através da expressão «a este propósito», o que, possivelmente, este não diria, pelo menos do mesmo modo, referindo uma data da edição lida ou citada «em segunda ou terceira mão»  que não corresponde às datas da primeira  publicação e da vida do autor. 

d) «Na sequência de Galisson, Coste (1976), define-se a competência comunicativa como «o conhecimento de regras psicológicas, culturais e sociais que regulam a utilização da fala num contexto social». Sendo a sala se aula um contexto social, deve-se desenvolver a competência comunicativa dos alunos. Como as crianças gostam de jogos, com a nossa tese, vamos apurar como utilizar jogos para o desenvolvimento da competência comunicativa das crianças».

Neste caso, a estudante começa por utilizar a citação de forma correta, mas passa imediatamente à modalidade deôntica, para, em seguida, partir de uma conclusão de «senso comum» como justificação do projeto que vai realizar. Sendo o parágrafo constituído pelos três períodos com modalidade diferente, o estudante utiliza de forma incorreta o argumento de autoridade da citação.

e) «Os estudos de Vigotsky são muito interessantes para compreender a televisão. Vigotsky refere que a televisão contribui para o desenvolvimento da zona potencial de aprendizagem (Ferrão Tavares, 2016)».
   
Neste caso, a autora utiliza incorretamente uma modalidade apreciativa, cometendo um erro  grave ao citar a autora Ferrão Tavares que não poderia ter feito nunca esta afirmação.   Vigotsky morreu em 1934,  sendo que a televisão terá sido vista por um público muito restrito antes da década de  40. A estudante poderia possivelmente ter afirmado algo do tipo «interpretando o pensamento de Vigostky no contexto actual, a televisão poderá ter integrado a «zona próxima ou potencial de aprendizagem» das crianças». Este exemplo de descontextualização, com anacronismo em relação ao pensamento de autores citados, é frequente em trabalhos que leio, tendo selecionado, propositadamente, um exemplo de uma citação que me foi atribuída. O facto dos estudantes terem acesso  a edições ou traduções de textos recentes,  em formato digital , muito possivelmente, explica que autores do passado sejam convocados a propósito de factos recentes sem que sejam tidas em conta as  condições de produção dos enunciados citados,  nomeadamente, as dimensões temporais dos mesmos. 
Uma das explicações para que os estudantes cheguem ao superior (e saiam do superior por vezes) confundindo os planos do demonstrativo e do interessante poderá dever-se, por um lado, ao facto de programas e práticas de aula enfatizarem a  necessidade de  «dar voz aos aprendentes» ou destes construírem «apreciação crítica»,  frequentemente, sem  a necessária preparação sob o ponto de vista discursivo. A escola continua a privilegiar uma abordagem semasiológica e a fazer a preparação de trabalhos insistindo nos léxicos específicos relacionados com as diferentes disciplinas e ignora, em muitos casos, a perspetiva onomasiológica  centrada nas noções (comparação, quantificação, qualificação...) ou operações transversais às diferentes disciplinas (resumir, definir, parafrasear...). Mesmo as práticas e projetos interdisciplinares  são concebidos numa perspetiva temática, descurando, frequentemente, aspetos discursivos. Refira-se que, nas Metas do Ensino Secundário, pretendia-se, em todos os anos, que os alunos dessem opiniões, mas a categoria modalidade aparecia, como conteúdo a explicitar, na disciplina de português, no 12º ano. 
O  reconhecimento do papel das competências em  línguas no sucesso escolar e no esbatimento das assimetrias sociais tem levado a propostas de concepções transversais das línguas nas outras matérias escolares. Apesar dos novos documentos curriculares para o ensino básico e secundário apontarem  para o reconhecimento do papel das competências comunicativas (linguagens e textos, comunicação) no «perfil do aluno», é nos documentos do Conselho da Europa que as dimensões linguísticas transversais são equacionadas de forma integrada, como no Guide pour l’élaboration des curriculums et pour la formation des enseignants. Les dimensions linguistiques de toutes les matières scolaires.   Beacco, J.-C., et al. (2016).  Também neste referencial são delineadas pistas para a integração das literacias académicas na formação de professores. 
No caso dos cursos de formação de professores, como  quase todos os cursos  do ensino superior, os conteúdos de escrita académica estão praticamente ausentes de seminários de investigação. Pede-se aos estudantes que escrevam tese ou artigo sem que as características discursivas destes textos académicos tenha sido objeto de análise. 

Centrei-me, neste «bilhete»,  na categoria da modalidade, poderia centrar-me na estrutura de artigos científicos, na elaboração de resumos, na paráfrase de esquemas, na introdução de citações, explicitação de conectores lógicos ou de «performativos» discursivos que clarificam a operação cognitiva que o autor «realiza» no momento de escrita e que este  pede ao autor para  realizar também («vou definir, em seguida», «resumi», «exemplifiquei»… operações discursivas  que traduzem operações cognitivas.  Ao anunciar a estrutura de uma tese ou de um capítulo ou ao anunciar a operação cognitiva que vai realizar,  o autor leva o leitor a antecipar o sentido, facilitando o processo de compreensão. Também a questão da identificação das «vozes» que são convocadas nos textos, incluindo a escolha da voz do autor (na primeira pessoa do  singular ou no plural ou através de fórmulas de apagamento pessoal, de nominalizações, de emprego de construções passivas ou de ouras  formas de identificação dos sujeitos) constitui motivo de  dificuldade na compreensão e produção de discursos académicos, necessitando, muitas vezes, de  aprendizagem em situações formais. 
Se, na escrita, estes problemas se colocam, na situação de apresentação oral de trabalhos,  colocam-se de maneira mais evidente  problemas de natureza discursiva multimodal. 
Este assunto foi objeto de reflexão em artigos publicados. 

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